domingo, 29 de maio de 2011

Lição do dia

Existe sempre uma coisa ausente - Caio Fernando Abreu

Paris — Toda vez que chego a Paris tenho um ritual particular. Depois de dormir algumas horas, dou uma espanada no rodenirterceiromundista e vou até Notre-Dame. Acendo vela, rezo, fico olhando a catedral imensa no coração do Ocidente. Sempre penso em Joana d’Arc, heroína dos meus remotos 12 anos; no caminho de Santiago de Compostela, do qual Notre-Dame é o ponto de partida — e em minha mãe, professora de História que, entre tantas coisas mais, me ensinou essa paixão pelo mundo e pelo tempo.

Sempre acontecem coisas quando vou a Notre-Dame. Certa vez, encontrei um conhecido de Porto Alegre que não via pelo menos há 20 anos. Outra, chegando de uma temporada penosa numa Londres congelada e aterrorizada por bombas do IRA, na época da Guerra do Golfo, tropecei numa greve de fome de curdos no jardim em frente. Na mais bonita dessas vezes, eu estava tristíssimo. Há meses não havia sol, ninguém mandava notícias de lugar algum, o dinheiro estava no fim, pessoas que eu considerava amigas tinham sido cruéis e desonestas. Pior que tudo, rondava um sentimento de desorientação. Aquela liberdade e falta de laços tão totais que tornam-se horríveis, e você pode então ir tanto para Botucatu quanto para Java, Budapeste ou Maputo — nada interessa. Viajante sofre muito: é o preço que se paga por querer ver “como um danado”,feito Pessoa. Eu sentia profunda falta de alguma coisa que não sabia o que era. Sabia só que doía, doía. Sem remédio.

Enrolado num capotão da Segunda Guerra, naquela tarde em Notre-Dame rezei, acendi vela, pensei coisas do passado, da fantasia e memória, depois saí a caminhar. Parei numa vitrina cheia de obras do conde Saint-Germain, me perdi pelos bulevares da le dela Cité. Então sentei num banco do Quai de Bourbon, de costas para o Sena, acendi um cigarro e olhei para a casa em frente, no outro lado da rua. Na fachada estragada pelo tempo lia-se numa placa: “II y a toujours quelque choe d’abient qui me tourmente” (Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta) — frase de uma carta escrita por Camilie Claudel a Rodín, em 1886. Daquela casa, dizia aplaca, Camille saíra direto para o hospício, onde permaneceu até a morte. Perdida de amor, de talento e de loucura.

Fazia frio, garoava fino sobre o Sena, daquelas garoas tão finas que mal chegam a molhar um cigarro. Copiei a frase numa agenda. E seja lá o que possa significar “ficar bem” dentro desse desconforto inseparável da condição, naquele momento justo e breve — fiquei bem. Tomei um Calvados, entrei numa galeria para ver os desenhos de Egon Schiele enquanto a frase de Camille assentava aos poucos na cabeça. Que algo sempre nos falta — o que chamamos de Deus, o que chamamos de amor, saúde, dinheiro, esperança ou paz. Sentir sede, faz parte. E atormenta.

Como a vida é tecelã imprevisível, e ponto dado aqui vezenquando só vai ser arrematado lá na frente. Três anos depois fui parar em Saint-Nazaire, cidadezinha no estuário do rio Loire, fronteira sul da Bretanha. Lá, escrevi uma novela chamada Bem longe de Marienbad , homenagem mais à canção de Barbara que ao filme de Resnais. Uma tarde saí a caminhar procurando na mente uma epígrafe para o texto. Por “acaso”, fui dar na frente de um centro cultural chamado (oh!) Camille Claudel. Lembrei da agenda antiga, fui remexer papéis. E lá estava aquela frase que eu nem lembrava mais e era, sim, a epígrafe e síntese (quem sabe epitáfio, um dia) não só daquele texto, mas de todos os outros que escrevi até hoje. E do que não escrevi, mas vivi e vivo e viverei.

Pego o metrô, vou conferir. Continua lá, a placa na fachada da casa número 1 do Quai de Bourbon, no mesmo lugar. Quando um dia você vier a Paris, procure. E se não vier, para seu próprio bem guarde este recado: alguma coisa sempre faz falta. Guarde sem dor, embora doa, e em segredo.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Dilma: e o kit escola sem homofobia?

"E se tudo isso que você acha nojento for exatamente o que chamam de amor?" [Caio Fernando Abreu]


Queria, ainda que por um dia, ver uma decisão tomada de forma livre e soberana em suas razões, que não fosse fruto de uma bagatela política e que se preocupasse com o bem da sociedade, com a valorização das diferenças e da dignidade da pessoa humana e não com um falso moralismo hipócrita.

Estou tão cansada e quase sem esperança... É triste ver que na política do nosso País, assim como em quase todo o resto, diga-se de passagem, falta seriedade, honestidade, comprometimento e independência.

Fiquemos, então, com as palavras de Martin Luther King, inúmeras vezes mais inspiradoras do que as que têm sido proferidas pelos ocupantes dos mais altos cargos do País:

‎"Devemos aceitar a decepção finita, mas nunca perder a esperança infinita." (Martin Luther King)



domingo, 15 de maio de 2011

Once

Eu amo filmes. Na verdade, quem acompanha o blog já deve ter percebido que amo filmes quase tanto quanto livros.

Numa busca constante por (bons) filmes para assistir, percebi que os típicos longas hollywoodianos já não me satisfazem mais. Não que não sejam divertidos ou interessantes, são sim, mas hoje me chamam mais a atenção os filmes com menos efeitos especiais, menos explosões, menos clichês e até mesmo, menos “felizes para sempre”.

Hoje vejo que um filme, um bom filme, tem que ter algo a mais do que... Bem, todos os outros. E esse algo a mais, acreditem ou não, costuma ser a simplicidade.

Então é isso, nessa busca por “outros” filmes, fiz ótimas descobertas, como “Eterno Amor”, “O mesmo amor, a mesma chuva”, “O filho da noiva”, e, finalmente Once, ou Apenas uma vez.

Once conta a história de um jovem (Glen Hansard – vocalista da banda The Frames) que, para ganhar uns trocados, tocava e cantava nas ruas de Dublin em suas horas vagas. Em uma noite, uma garota tcheca (Marketá Irglová) pára para ouvir suas músicas e, num diálogo um pouco inusitado, eles combinam um encontro no dia seguinte para que ele conserte o aspirador de pó dela (“principal” ocupação dele).

Com o encontro, descobrem que a paixão pela música existe em ambos e é essa paixão que os aproxima cada vez mais, a ponto de chegarem a fazer parte do cotidiano um do outro.

Se é um musical? Não sei, porque foge completamente ao estilo “faça tudo cantando”. Melhor seria dizer que o foco do filme é a música, que permeia o relacionamento deles de todas as formas e em praticamente todos os momentos.

O romance entre os protagonistas inominados (aliás, muito interessante essa técnica, não dar um nome a um personagem, para que ele possa ser qualquer um) é inserido de forma muito sutil, o que deixa tudo ainda mais real.

Mas esse romance nunca se realiza, ou melhor, se concretiza: ela tem uma filha, é casada e mora com a mãe; ele tinha um relacionamento mal resolvido com uma garota na Inglaterra. É um querer consciente de suas limitações, mas ainda assim tão bonito, tão doce, que chega a deixar uma pontinha de tristeza na gente, mas é uma tristeza que não pesa.

Além do ótimo e simples roteiro, o filme deixa de presente uma trilha sonora maravilhosa, que não consigo parar de ouvir.

Então é isso: se você quer um filme que vale a pena ser visto em qualquer momento, o meu voto com certeza vai para este.

domingo, 8 de maio de 2011

"Há escolas que são gaiolas e há escolas que são asas...

Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do vôo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. Engaiolados, o seu dono pode levá-los para onde quiser. Pássaros engaiolados sempre têm um dono. Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o vôo.

Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são pássaros em vôo. Existem para dar aos pássaros coragem para voar. Ensinar o vôo, isso elas não podem fazer, porque o vôo já nasce dentro dos pássaros. O vôo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado.” [Rubem Alves]

Há alguns anos cheguei à triste conclusão de que, infelizmente, uma parcela significativa dos professores dá aula com o mero objetivo de poder passar horas a fio falando sobre seus feitos grandiosos ou tendo o prazer de se auto-afirmar, maltratando e humilhando os alunos.

Essa conclusão veio depois de quatro anos sendo aluna de alguns desses “professores”.

Durante esse tempo, percebi, ainda, que mesmo a parcela de professores que não se encaixava no perfil acima, tinha algo em comum com eles: nem uns, nem outros queriam realmente ouvir os alunos. Aliás, não só não queriam ouvir o aluno, como também não queriam que pensássemos por nós mesmos. Quantas vezes não vi um professor zerar a questão de um aluno só porque havia exposto uma linha de pensamento diferente, ainda que muito bem fundamentada?

Na verdade, bastava que soubéssemos repetir, ainda que sem entender, o que nos havia sido dito, da maneira exata como nos fora dito. Da maneira deles, não da nossa maneira. Isso mesmo, sem pensar, sem refletir, sem compreender verdadeiramente.

Em todos esses anos, não me lembro de quase nenhum professor que se preocupasse em saber o que pensávamos, seja sobre as aulas, conteúdo, vida acadêmica, profissão, nada.

Não digo que não aprendemos nada com esses professores, justiça seja feita, aprendemos sim. Mas me chateia pensar que poderíamos ter aprendido muito mais, talvez não sobre a matéria, mas sobre a vida, sobre como tratar as pessoas. E eles também poderiam ter aprendido muito conosco também, não por sermos alunos, mas por sermos pessoas. Todos têm algo para oferecer e me parece que todos temos perdido as lições mais valiosas.

Mas então, como sempre acontece na vida, ocorreu o inesperado.

É isso mesmo! Na última quinta-feira aconteceu uma coisa inédita em meus quatro anos de faculdade: durante todo um horário, um professor se colocou à disposição para ouvir o que os alunos tinham a dizer.

Para o espanto (ou talvez não) do professor, a turma ficou praticamente em silêncio. Inclusive eu, que nunca pensei que isso fosse acontecer, que a oportunidade fosse nos ser dada.

Eu, que reclamava tanto, quando tive a oportunidade de falar, fiquei calada. Mas meu silêncio não foi, talvez, como o de meus colegas. Fiquei calada por, de certa forma, ter sido ouvida antes. E era, estranhamente, um silêncio feliz, porque eu sabia que se falasse, seria ouvida.

Então é isso, talvez este post não tenha tido um objetivo claro. Mas talvez seja um desejo traduzido em palavras, de que nossas universidades e escolas, aos poucos, aprendam a abrir a porta das gaiolas e transformem-se em asas.